Madrugada faz sentir



Que dia puxado o de hoje!" pensei fechando o bar em que eu trabalhava. Era duas e meia da manhã. Desde sempre nutria o costume de andar a pé até a minha casa. "Mas que menina louca.", bom, já estava acostumada a ouvir isso. Não é que eu de fato fosse louca. Não, não. Eu só gostava de caminhar. Eu entrava às oito no trabalho, a noite sempre era estressante por mais calmo que estivesse a entrada de clientes. Mas eu gostava de trabalhar lá, eu conhecia cada cliente decor e sempre acabava me tornando amiga deles.
Thiago era um homem de 35 anos. Havia perdido a esposa em um acidente aéreo. Desde então ele passava todas as noites no bar. Ele não bebia nada alcoolico, somente sentava em uma mesa no canto e ficava lá, ás vezes lendo, ás vezes escrevendo, outras vezes até pedia uma água e algo para comer, mas em alguns dias - e esses eu poderia dizer que eram os piores - ele sentava na cadeira e ficava lá, mudo, quieto, olhando fixamente para um ponto qualquer. Posso dizer com certeza que esses eram os piores dias. Já presenciei lágrimas. Sabe quando você não pode lidar com a dor e prefere criar um mundo só seu? Ele fazia isso. E nesse mundo ele teve tempo para casar, ter filhos, viajar, comprar um cachorro, ser feliz de verdade. Thiago ainda não havia aprendido que você tem somente o hoje para ser feliz. Que não adianta ficar triste por uma coisa que não aconteceu. Ele deixou de sofrer e passou a se martirizar.
Mirian era uma garota radicalmente feliz. Do tipo bem positiva. Onde ela entrava trazia sua paz. Ela sabia alegrar todos a sua volta. Todos os dias, às dez horas da noite, ela entrava no bar, pedia uma bebida e arrumava alguém para conversar na banqueta enquanto ela lentamente tomava sua bebida. Ás dez e meia, um carro - todo dia diferente - buzinava na frente do bar e ela se despedia dando um tchau. Precisava trabalhar. Ela não era uma prostituta porque queria ou porque gostava. Ela era uma prostituta porque precisava. Claro que você pode ser o que quiser, mas isso vai do quanto de esforço você tem. Ela tinha bastante, ela só não podia sair daquela vida. Quando sua mãe engravidou, precisou fugir. Uma prostituta grávida? Morte na certa. Todos os dias da sua gravidez ela torcia para que fosse um menino que crescesse e ficasse forte e a protegesse e a tirasse daquela vida. Mas quando descobriu que era uma menina... Passou a torcer com todas as forças para que os cafetões jamais a encontrassem. Mas eles a encontraram no dia em que ela teve a bebê, em um beco. Eles a mataram e cuidaram da menina. Mandaram pra escola, compraram roupas, deram casa e alimento e a criaram para ser uma prostituta. Todo dia eles contavam para ela a história da mulher que fugiu e depois morreu como uma simples vagabunda. Mirian não queria aquela vida pra ela. Por isso ela era tão feliz. Ela acreditava em um amanhã melhor.
Raimundo, chegava todos os dias sujos. Vinha sempre depois de sair do serviço. Sua mulher o havia abandonado por causa das contas que só cresciam e desde então ele havia se tornado um "pinguço". Bebia, bebia e bebia. Raimundo tinha uma história. Raimundo era alguém. Ele só não conseguia se lembrar disso. Ele deixou uma perda acabar com tudo. Quase sempre era levado embora arrastado. E mesmo assim, no dia seguinte, voltava. Ele precisava achar um incentivo pra seguir em frente. Ele precisava de alguém que mostrasse pra ele o melhor que ele poderia ser. Raimundo precisava de amor.
Elen, uma "coroa" loirona. Ela era rica, do tipo que troca de carro todo ano, que veste roupa de luxo. Era uma juíza. Estava acostumada a julgar todo tipo de causa. Mas mesmo assim ela não sabia o que fazer com a sua vida. Há cerca dois anos havia descoberto que seu esposa a traía com uma mulher com metade de sua idade. E ela não sabia como levar aquilo, entao, todo dia que ele a ligava dizendo que ficaria até tarde no emprego, ela vinha até o bar e bebia até ficar bêbada e contava a mesma história para mim, ficando brava com quem a atrapalhasse e chorando rios. Era triste e de partir o coração.
Toda madrugada, ao fechar o bar, eu voltava caminhando para minha casa e pensando em cada caso em particular. Hoje, pensei nesses quatro. Mas havia inúmeros. Eu achava engraçado como eles haviam se perdido na vida. Tantos corações partidos que não se encontravam. Tantas histórias. Desilusão amorosa era quase sempre o que acabava com eles, o que os levava para o fundo do poço. E eu caminhava pelas ruas pensando que embora eu não tivesse me acabado, meu coraçao partido sangrava um pouco mais todo dia e todo dia o buraco aumentava. As vezes, pelas ruas, via um mendigo ou outro e ficava pensando qual era a história por trás daquele corpo deitado e abandonado na sarjeta. Ás vezes eu passava no meio da neblina e pensava na quantidade de vezes que a gente se cega na vida. Que a gente acha que tá no caminho certo e na verdade não está não. Mas a gente insiste em continuar andando. Nunca se sabe o que haverá em frente, e vai que vale a pena. Ás vezes, eu só fico ouvindo o silêncio, as pessoas dormindo tranquilas, sem preocupações, sem estresse. E quando eu chego em casa eu sei que irei encontrar abrigo. Eu sei que irei deitar na minha cama e levar um bom tempo pra dormir. Eu sei que mil pensamentos rodearão minha mente. A madrugada faz isso com a gente. Nos faz refletir sobre a vida. A dor acerta em cheio. O coraçao vazio aperta. E eu aperto os olhos e ás vezes até tampo os ouvidos porque não posso lidar com a dor em meu peito. Eu passo a noite toda ouvindo problemas e não posso lidar com os meus.
É sempre assim. Até que eu durma.

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